18 de out. de 2008

Gustavo Bernardo usa boato sobre filho de Machado para criar livro

Juliana Krapp, Jornal do Brasil 17/10/2008

RIO - Corre a boca miúda que Machado de Assis teria tido um filho com a mulher de José de Alencar, seu amigo e colega de ofício. Mário de Alencar, o rebento, era epilético, de nariz adunco como o do escritor mulato.

Carregava, além das evidências físicas, o comprometedor título de eleito: era alvo de uma indisfarçada afeição do Bruxo, de quem foi o amigo mais íntimo em seus últimos anos de vida.

Verdade ou mentira, o escritor Gustavo Bernardo inspira-se na história, de leve, para o seu recém-lançado A filha do escritor. Mas, no romance, Mário é substituído por Lívia, a bela mulata que chega a um hospital psiquiátrico de Itaguaí, nos tempos atuais, jurando que é filha legítima de Machado.

É o mote para que Bernardo embaralhe referências machadianas – Lívia é protagonista do primeiro romance do Bruxo, Ressurreição, e o hospício em Itaguaí alude à Casa Verde de O alienista – em um jogo onde a própria ficção é bamba, no bom sentido. Como uma caixa dentro da outra, há camadas ficcionais que vão se abrindo, cedendo a reviravoltas e artimanhas narrativas.

Estudioso antigo da obra do autor carioca, Bernardo escreveu o livro com patrocínio do Programa Petrobras Cultural. Ressente-se da habitual – e equivocada – associação de Machado ao realismo, e desmancha-se em elogios à sua maior musa inspiradora: a ficção.

- A vida é mais intensa quando está fora da vida - garante.

Por que o senhor escolheu o boato sobre o filho bastardo de Machado de Assis como ponto de partida para o romance?

- À medida que estudo o tema, mais me convenço de que não é um mero boato. Só há uma foto de Mário de Alencar [o filho em questão]. E, nela, fica claro que ele tem o nariz do Machado, adunco, e não o do José de Alencar. A cor da pele, infelizmente, não dá para ver. Mas Mário tinha epilepsia, como Machado, e nem José ou sua mulher eram epiléticos. De qualquer forma, esse boato é interessante porque tira Machado do pedestal, joga-o em uma situação bem humana, sobretudo considerando que ele foi muito amigo de José de Alencar. Foi talvez uma das poucas pessoas do século 19 com quem Alencar não brigou. E talvez aquela com quem tivesse mais motivos para brigar.

Mário de Alencar também foi muito próximo de Machado?

- Ele cuidou de Machado nos seus últimos anos de vida, foi o amigo mais próximo. É aquele para quem o Bruxo mais fez confidências em suas cartas [ou no que sobrou delas, uma vez que o escritor tinha o hábito de queimar suas correspondências]. Não sei se Mário, caso fosse mesmo filho, sabia disso. Mas outro dado importante é que, contrariando sua postura extremamente ética, Machado fez o diabo para tornar Mário um imortal da Academia Brasileira de Letras. Ele não tinha nenhuma obra publicada, mas conseguiu assim mesmo.

Por que é uma filha – Lívia – e não um filho – Mário – que aparece em seu romance?

- Bem, muitos machadianos ficam indignados com essa fofoca. Mas o que determinou minha escolha é o fato de uma personagem como Lívia me permitir trabalhar em vários níveis. Para começar, pude simular um retorno à vida dessa personagem de Machado, protagonista de Ressurreição. Que, para variar, não é Capitu. Capitu já cansou. E também porque a Lívia é uma pré-Capitu. Ambas estão ligadas a temas parecidos, embora, em Ressurreição, claramente não haja nenhum tipo de traição. Acho, por exemplo, que tanto Lívia quanto Capitu eram negras, embora Machado não diga isso.

Como, então, sabemos que eram negras?

- Em Capitu é mais fácil. Ela era filha de um agregado pobre, vestia roupas remendadas. Embora Machado a descreva com pele e olhos claros, essa ênfase não seria suficiente para despistar o fato de que ela era mestiça, ou seja, mulata. Há também a alusão ao cabelo rebelde, enrolado. E a sensualidade, o movimento decidido de Capitu, que é muito mais homem que o Dom Casmurro, é outra pista. Lívia é mais um efeito disso para mim. Em Ressurreição não há as levíssimas sugestões que aparecem em Dom Casmurro. Mas, como em meu livro ela é filha de Machado, a pele escurece.

É o jogo da ficção que o guia neste livro, não?

- Tenho a convicção de que todos os discursos são ficções. Tudo o que a gente fala, inclusive esta entrevista, é um jogo ficcional. Só que a literatura se assume assim, enquanto os outros discursos, inclusive o jornalístico, não podem fazê-lo. A filha do escritor é uma pálida tentativa de acompanhar a herança de Miguel de Cervantes, que é uma meta-ficção radical, a idéia de que a gente vive muito mais intensamente em situações de ficção do que em situações reais. A vida é mais intensa quando está fora da vida. E Machado tinha claríssimo esse jogo de Cervantes: ele brinca com a ficção o tempo todo.

E como o senhor planeja essas camadas de ficção?

- Eu sempre tive facilidade grande para frases poéticas. Gosto de contrabandear poesia na prosa. Tenho dificuldades para o enredo, para a contação de histórias. Então, quando surge uma idéia, eu a exploro ao máximo. Neste caso, a idéia é a filha de Machado reaparecer 100 anos depois de sua morte. Faço disso uma mistura de dois tempos, e de realidade e ficção. O barato é ver aonde vai dar. Porque em alguma hora o texto me carrega. O grande prazer é o momento em que se consegue derrubar o racional, desatar o professor, quebrar as classificações. Aí o texto vai sozinho, e eu vou atrás, descobrindo o que acontece.

Há algo do cinismo machadiano no livro?

- Fala-se muito de Machado como pessimista. Mas ele não é pessimista de jeito nenhum. Ele é cético e, principalmente, um grande humorista. Pois faz uma brincadeira com o discurso racional, com a arrogância: vai desmontando aqueles que se acham. Por isso eu precisei de uma voz em terceira pessoa, um interlocutor, no meu livro. Tudo culpa do Machado. Aí está o jogo dele: fazer livros contra o próprio narrador. Não é invenção minha, é do Bruxo. O narrador vai se entregando aos poucos. Esse é o Brás Cubas, é o Dom Casmurro: ao final do livro, vê-se que Bentinho é um canalha completo. Até que demorou muito, demoramos décadas para perceber isso. Acreditou-se demais em Machado.

Machado é difícil?

- Eu gosto mais de Machado agora do que nunca. Os outros dois grandes autores brasileiros, depois de certo tempo, cansam: Clarice Lispector e Guimarães Rosa. Pois eles fazem um trabalho de invenção da linguagem, frase a frase. Já Machado tem um texto muito simples, usa muito menos vocábulos que os outros autores do século 19. Machado, que todo o mundo diz que é difícil, é fácil. As frases são simples e os parágrafos, curtos. O nível de reflexão dele é que é sofisticado. E isso vai ficando, com o tempo, mais genial. Eu gosto muito de todo o Machado, e não só daquela segunda fase, que eu acho falsa. O início de Machado é muito bom. Esse primeiro romance dele, Ressurreição, é uma obra-prima.

Por isso o senhor o escolheu como inspiração?

- Sim, até para fazer um confronto com a fortuna crítica, que às vezes é uma miséria crítica. Valoriza demais o Memórias póstumas de Brás Cubas, que é um livro de fato genial. Mas o exaltam como se Machado tivesse dado um estalo e virasse gênio. Acontece que esse cinismo brincado do escritor está presente já nos primeiros contos, romances, peças. Ele não virou de repente um grande escritor, nunca foi medíocre, como acreditam alguns.

Houve excesso de Machado em 2008? Isso é bom ou ruim?

- Num certo sentido eu faço parte disso [risos]. Tem um lado que é interessante, porque retoma o Machado, o celebra, mas tem o lado da overdose, que cansa. Para mim tem sido uma boa oportunidade de quebrar um discurso em cima do escritor, este que o canonizou: o que o coloca como maior escritor brasileiro porque é realista e porque, no fundo, tem alma branca. Isso não se diz, mas está por trás do discurso da canonização. O realismo está sempre de acordo com o status quo.

E é uma grande besteira dizer que o realismo no Brasil começou em 1881 com Memórias póstumas de Brás Cubas e O mulato, de Aluísio Azevedo. São duas obras que não têm nada a ver entre si. E, além disso, determinar que uma obra chamada Memórias póstumas seja realista é um grande contra senso. Machado não só é anti-realista como tem discursos contra o realismo. A melhor frase dele é: “A realidade é boa, o realismo é que não serve para nada”.

Ele ajuda a reverter, nesse momento, não apenas o equívoco sobre si próprio, mas também com relação ao próprio realismo. O realismo é uma espécie de doença: você não consegue lidar com a ficção, então busca a realidade. Sei que é difícil lidar com uma outra realidade. Mas o barato é o elogio da imaginação, essa mentira. E Machado é o nosso grande autor contra o realismo, contra a suposição de que é possível haver uma única verdade.


CONTOS DE AMOR E CIÚME

Organizador: Gustavo Bernardo

Autor: Machado de Assis

Editora: Rocco (176 págs.)


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