Novembro/2008 | Bravo! Apresenta
Fnac Pinheiros
Redação
Na próxima quinta-feira, dia 13/11, acontecerá na Fnac Pinheiros um debate sobre a obra de José Saramago. Entre os participantes estão Paulo Marcos Brito, diretor da adaptação teatral de uma das obras do autor, O Conto da Ilha Desconhecida, o jornalista Almir de Freitas e o diretor de redação de BRAVO! João Gabriel de Lima.Serão comentadas as dificuldades de adaptar a obra do escritor português e haverá um debate sobre sua produção, que tem como best-seller no Brasil o livro Ensaio Sobre a Cegueira, recentemente adaptado para o cinema pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles. Saramago vem ao Brasil nesse mês para lançar seu último livro, A Viagem do Elefante.
O evento acontece a partir das 20h e é aberto ao público.
Fnac Pinheiros
Av. Pedroso de Moraes, 858
São Paulo - SP - Pinheiros
Tel. (11) 3579-2000
Dia 13 de novembro, às 20h
José Saramago em sua casa em Lisboa. O cinema faz com que o escritor viva um período de popularidade — Ensaio sobre a Cegueira já teve 600 mil espectadores no Brasil
Revista BRAVO! | Novembro/2008
A Vida depois do Nobel
Em grande momento criativo, o escritor português José Saramago lança um novo livro aos 87 anos
Por Almir de Freitas
O Nobel muda as coisas de muitas maneiras", disse certa vez o escritor canadense Saul Bellow. "Conheço gente, como John Steinbeck, para quem o prêmio foi o beijo da morte." Nobel de Literatura em 1976, Bellow se referia, naturalmente, à morte para o ofício de escrever, com os laureados ameaçados de atingir uma espécie de limiar: obtida a mais importante honraria do mundo, não haveria muito mais a fazer. Como se escrever não fizesse mais sentido, restaria, na condição de "pessoa oficial" (na expressão de outro Nobel, a polonesa Wislawa Szymborska, em 1996), participar de incontáveis e intermináveis mesas-redondas, conferências, sessões de autógrafos etc. Haveria, ainda, a tentação de colocar a fama a serviço de alguma causa política, coisa que a Academia Sueca — que costuma valorizar essas questões extraliterárias nas suas escolhas — aprovaria.Em junho de 1999, confrontado com a frase de Bellow, José Saramago torceu: "Oxalá não seja", disse, em uma entrevista concedida à revista BRAVO!, durante uma viagem de trabalho ao Brasil. Na ocasião, fazia apenas alguns meses que ele havia se tornado o primeiro escritor de língua portuguesa a receber um Nobel de Literatura. "Este é o meu ano de miss universo", brincou, ainda que se queixasse da absoluta falta de tempo para escrever diante da multiplicação de compromissos que o fato, extraordinário, havia provocado. "Simplesmente não posso, não poderia e não poderei continuar nesse ritmo... Então seria mesmo o beijo da morte", afirmou na época.
Seria? Dez anos depois do Nobel, concedido a ele em outubro de 1998, Saramago volta ao Brasil neste mês para lançar mais um livro, A Viagem do Elefante, classificado pelo autor de "conto", embora tenha "exatamente 258" páginas, como ele próprio frisa em nova entrevista à BRAVO!, concedida por e-mail (leia na pág. 70). No "conto", Saramago ensaia uma volta ao romance histórico, com o enredo que descreve a insólita caravana que acompanhou o elefante salomão (assim mesmo, em minúscula) pela Europa no século 16. Lembra, em muito, momentos de Memorial do Convento, talvez sua melhor obra. Engenhoso e engraçado, o livro exibe ainda a maestria de um escritor que se dispôs a pagar o preço de buscar a clareza do pensamento no excesso; a construir uma prosa cujo ritmo compassado, intercalando fatos e diálogos, tem uma capacidade singular tanto de atrair admiradores quanto de semear detratores.
Além do lançamento de A Viagem do Elefante, Saramago experimenta um momento de popularidade raro para qualquer autor. Até meados de outubro, o filme Ensaio sobre a Cegueira, baseado na obra homônima do escritor, já tinha sido visto por quase 600 mil pessoas só no Brasil — o dobro do que o diretor, Fernando Meirelles, projetava antes da estréia, em setembro. O sucesso ajudou a reconduzir o romance às listas de mais vendidos. Relançado pela Companhia das Letras em maio, o livro teve 40 mil exemplares acrescentados a uma já assombrosa vendagem de 220 mil desde o seu lançamento, em 1995.
Para completar este novo mês de "miss universo" no Brasil, Saramago será tema de uma grande exposição no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, chamada de A Consistência dos Sonhos. A mostra, que contará com a presença do escritor, reunirá manuscritos, vídeos, fotografias, gravações e primeiras edições, totalizando um acervo de mais 500 peças que abrangem toda a vida desse português nascido em 1922 na minúscula freguesia rural de Azinhaga, na Província do Ribatejo, lugar que ele trouxe à luz no livro Pequenas Memórias (2006), outra bela obra de sua vida pós-Nobel.
CUBA E INTERNET
A jornada de Saramago além do rubicão da Academia Sueca não esteve, contudo, imune a acidentes e imprevistos. Já no primeiro romance dessa nova fase, o escritor parecia se encaminhar para o destino aziago de tantos notáveis — além de Steinbeck, também os americanos William Faulkner (1949) e Ernst Hemingway (1954), por exemplo, tiveram a medalha e o diploma recebidos em Estocolmo transformados em lápide e testamento literário. Com A Caverna (2000), Saramago ressurgiu como sombra de si mesmo: argumento, personagens e acabamento, claramente inferiores, potencializavam os defeitos que os críticos de sua obra até ali apontavam. Maniqueísta, panfletário e escrito numa prosa pedregosa, o livro era chato, simplório e difícil de ler.
Saramago nunca escondeu suas convicções políticas e ateístas em suas obras — mas ele havia conseguido transformar essas características numa distinção literária. Contudo, na alegoria do Centro — misto de condomínio de luxo e shopping center que encerra a vida das pessoas em A Caverna —, só restava o tosco manifesto pré-industrial em favor de oleiros, contra o progresso capitalista que aliena a todos, o tal que, a exemplo da caverna de Platão, nos impede de enxergar "a verdade".
Diante desse cenário desolador que se anunciava, é ainda mais notável que o homem Saramago tenha se disposto, já devidamente galardoado, a rever (flexibilizar, ao menos) algumas de suas posições — ainda mais numa idade em que a maioria dos homens opta pelo imobilismo. Ele está longe de abdicar de suas crenças, mas causou rebuliço entre os camaradas do Partido Comunista Português ao romper publicamente com Cuba, em 2003. Diante da execução sumária de três cubanos que haviam seqüestrado uma balsa para tentar chegar aos Estados Unidos, o escritor se pronunciou: "Cuba não ganhou nenhuma batalha heróica fuzilando esses três homens, mas perdeu minha confiança, quebrou minhas esperanças, traiu meus sonhos", escreveu num breve texto publicado no jornal espanhol El País.
Tão surpreendente quanto, talvez, tenha sido a iniciativa de Saramago em aderir à blogosfera. Em setembro último, o defensor das terrinas de barro e crítico das louças de plástico de A Caverna colocou no ar o Caderno de Saramago (http://caderno.josesaramago.org ). O escritor posta praticamente um único (e imenso) texto por dia, todos fechados para comentários. Como nem tudo pode mudar, no dia 16 de outubro passado, por exemplo, publicou um texto com o título Deus como Problema. Que assim, inconfundivelmente, principia: "Se eu próprio pertencesse ao grémio cristão, o catolicismo vaticano teria de interromper os espectáculos estilo cecil b. de mille em que agora se compraz para dar-se ao trabalho de me excomungar, porém, cumprida essa obrigação disciplinária, veria caírem-se-lhe os braços".
Como se vê, nem tudo pode ser mudado. Mas o que Saramago oferece, nesse mau humor espirituoso numa grafia que está a ponto de ser extinta pela reforma ortográfica, é o melhor que o escritor poderia ter conservado. Ainda mais militando em um meio tão inusitado para um homem que, no dia 16 deste mês, completa 87 anos.
A IDADE A MORTE
Saramago, é preciso dizer, está acostumado a vencer o tempo. Depois de estrear desastrosamente na literatura aos 25 anos, com o romance Terra do Pecado (1947), colecionou durante três décadas uma série de insucessos, principalmente com livros de poesia. Em 1977, aconteceu de lançar um novo romance, Manual de Pintura e Caligrafia, ao qual se seguiram Levantado do Chão (1980), alguns contos e peças de teatro e, por fim, o megassucesso Memorial do Convento (1982). Tinha exatamente 60 anos de idade.
Dez anos depois, já tinha publicado O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), Jangada de Pedra (1986), História do Cerco de Lisboa (1989) e O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), livros que o conduziram — não sem polêmica — à condição de maior escritor da língua portuguesa. Até hoje são renhidas as disputas entre os partidários de Saramago e os de António Lobo Antunes, também eles desafetos mútuos. No mundo da futricas literárias, o autor de Os Cus de Judas (1979) e Manual dos Inquisidores era, para os seus defensores, o verdadeiro merecedor do Nobel.
Em 1988, o viúvo Saramago casou-se com uma entusiasmada jornalista espanhola, María del Pilar del Río Sánchez, que, dois anos antes, o havia procurado após se encantar com a visionária Blimunda, o soldado maneta Baltasar e o padre voador Bartolomeu Lourenço, personagens de Memorial do Convento. Mais uma vez, a idade não foi problema: ela estava com 38 anos e ele, com 66. Foi ela quem teve a idéia, em 1992, de morar em Lanzarote, uma ilha vulcânica de 860 km2 no arquipélago das Canárias, distante pouco mais de 100 km da costa africana. Na ocasião, Saramago subestimou-se. "Viver em Lanzarote nesta altura da vida?" Mas acabou se convencendo: tinha 70 anos quando promoveu mais essa reviravolta.
Pilar del Río foi, sem dúvida, um acontecimento crucial na vida de Saramago, coincidentemente, nos dez anos que antecederam o Nobel. Dona de opiniões fortes, ela por vezes era tão ou mais linha-dura que o marido nas questões políticas. Desde 2007, Pilar está à frente da Fundação José Saramago, para, segundo declaração de princípios do escritor, "lutar por grandes e pequenas causas", com ênfase nos direitos humanos e nos "problemas do meio ambiente e do aquecimento global do planeta".
Durante uma entrevista publicada em setembro de 2007 no jornal The New York Times, Saramago declarou à mulher: "Se eu tivesse morrido antes de conhecer você, Pilar, eu teria morrido me sentindo muito mais velho". Talvez não por coincidência, A Viagem do Elefante tem a seguinte dedicatória: "A Pilar, que não deixou que eu morresse". Segundo ela mesma conta, num texto publicado no blog da Fundação, Saramago temeu não conseguir concluir o livro, debilitado gravemente por uma forte pneumonia no fim de 2007, da qual levou meses para se recuperar.
Na soma de todas as suas vidas e de seus renascimentos, em todas as reviravoltas de uma trajetória rara, Saramago conseguiu driblar o fim a que parecia destinado nos papéis de escritor fracassado, de viúvo sessentão, de velho obsoleto de opiniões antiquadas e, finalmente, do escritor tocado pela fúnebre Academia Sueca. Como Bellow — que à maldição acrescentou o antídoto, ao criar depois do prêmio obras-primas como Ravelstein e ao ter um filho aos 84 anos —, Saramago foi bem-sucedido na decisão de escolher, ele mesmo, "o próprio beijo da morte", qualquer que seja ele.
"dei largas, na linguagem,
à imaginação que me restava"
José Saramago conta como a criação de "A Viagem do Elefante" o ajudou a superar uma doença grave e faz um balanço de sua obra por Almir de freitas
BRAVO!: Na dedicatória de A Viagem do Elefante, o sr. anotou: "A Pilar, que não deixou que eu morresse". Como foi esse período difícil, em que o sr. enfrentou a doença que o fez até temer não concluir o livro?Saramago: Foi difícil, muito difícil. Não concluir o livro seria mau, mas pior seria morrer. Portanto, tratava-se de salvar a vida, embora as esperanças fossem quase nulas. Felizmente tive a sorte de encontrar no hospital de Lanzarote uma excelente equipe médica, pessoas ao mesmo tempo de uma grande qualidade humana. E havia Pilar com sua coragem, a sua determinação, a sua vontade de ferro. Como eu disse algumas vezes, ela agarrou-me pela gola do casaco e não me deixou cair ao poço.
De alguma maneira, esse período difícil se refletiu em A Viagem do Elefante? O livro mostra que o sr. não perdeu o bom humor.
Digamos que se refletiu ao revés. Em lugar do tom melancólico, mesmo desesperado, que seria de prever numa situação em que tudo parecia apontar a um desenlace fatal, foi como se a mente se me tivesse aberto mais. Reduzido a uma sombra de mim mesmo, fui capaz de manter diálogos vivíssimos com os médicos. Tinha relativizado a minha situação, esquecido de alguma maneira o corpo, uma vez que não podia fazer nada por ele, e dei largas, na linguagem, à imaginação que me restava.
No livro persistem, ainda, as farpas direcionadas ao Estado e à Igreja, que são características de sua obra. A Igreja Católica não trouxe nada de bom à humanidade?
As religiões, todas elas, nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros. Pelo contrário. E o catolicismo, neste particular, deu os piores exemplos ao mundo, basta que recordemos as torturas e as fogueiras da inquisição, essa associação criminosa cujos herdeiros ainda não pediram perdão às suas vítimas. Os crimes que desde sempre se cometeram em nome dos deuses são, como se dizia dantes, de bradar ao céu… Mas, como já deveríamos saber, o céu é surdo de nascença.
O sr. define o livro, de pouco mais de 250 páginas, como "conto". Gostaria que o sr. explicasse melhor essa definição que o sr. reivindica para essa narrativa.
São exatamente 258. Quando se anunciou o próximo aparecimento do livro, toda a gente, sem nada saber dele, começou a chamar-lhe romance. Ora, A Viagem do Elefante não é um romance, faltam-lhe os ingredientes que nos habituamos a encontrar no gênero. Por exemplo, não há história de amor. E também não há uma personagem feminina importante, daquelas a que os leitores dos meus livros se habituaram. Quanto a mim, já desisti de classificações. Entenda cada um o livro como melhor lhe parecer e chame-lhe o que quiser.
Em obras recentes, o sr. abordou tanto as suas memórias de infância, em As Pequenas Memórias, quanto a morte, na ficção As Intermitências da Morte. O sr. considera que esses são temas de que não podemos escapar quando envelhecemos?
Mais a recordação dos primeiros anos que a proximidade da morte. Em todo o caso, se repararmos bem, As Intermitências não é sobre a morte, mas sobre a necessidade dela para que possamos viver. E que desejar viver eternamente, esse antigo sonho da espécie humana, significaria ser velho eternamente, velho cada vez mais velho, uma vez que não se pode parar o tempo.
Dez anos se passaram desde o Prêmio Nobel de Literatura. O que mudou em sua rotina de lá para cá — se é que mudou?
Os compromissos, as intervenções multiplicaram-se, mas, no essencial, nada mudou. O Nobel tornou-me mais visível e mais audível, criou-me essa responsabilidade. Fiz e continuo a fazer o possível para estar à altura.
Algo mudou para a literatura de língua portuguesa, de alguma maneira o Nobel atraiu atenções para essa língua tão pouco falada no mundo?
Duzentos milhões de pessoas não são pouca gente. Com o Brasil como barco almirante, esta esquadra tem muito que navegar. Assim haja vontade política e meios materiais, isto é, dinheiro, porque sem ele não se poderá ir longe. Sobre a outra parte da pergunta, há que reconhecer que o interesse da edição internacional pelos autores portugueses cresceu muito a partir da atribuição do Nobel.
Já se falou que sua prosa lembra, pelo ritmo compassado, uma narrativa oral, em que os fatos e as falas se entrelaçam. O sr. concorda com esta idéia? Em caso positivo, seria esta característica que define a "voz" que o sr. encontrou para escrever?
Os sinais de vírgula e ponto, únicos que uso nas minhas ficções, são, como prefiro dizer, sinais de pausa, um mais breve, outro mais longo. Mas não é daí que vem a tal "voz". A "voz" vem do tom narrativo, que é muito mais que a simples oralidade, vem da proximidade com o leitor que é talvez a máxima preocupação do narrador, vem do uso de cadências e ritmos diversificados, todos tendentes a suscitar uma atmosfera especial no ato de ler.
Como tem sido a experiência do sr. com a internet, com o blog? Tem valido a pena, estabeleceu-se a comunicação com os leitores que um blog supostamente traz?
Creio que tem sido positiva. E com um aspecto curioso que mostra até que ponto podemos ser contraditórios. Inúmeras vezes convidado a colaborar na imprensa, sempre me tenho negado, e agora eis-me a escrever grátis com a maior regularidade naquilo a que já chamei a página infinita de internet…
Foi muito marcante a sua reação emocionada à adaptação para o cinema de Fernando Meirelles de Ensaio sobre a Cegueira. Qual seria a grande qualidade que o sr. destacaria no filme?
O escrúpulo de Fernando em respeitar o espírito do romance sobre todas as coisas. Tudo no filme está posto ao serviço dessa preocupação.
O que o sr. tem achado da recepção do filme no mundo?
Creio que ainda é cedo para falar. Até agora tem-me parecido muito favorável, não obstante as incompreensões de certa crítica que diz que o filme é demasiado violento. Pelos visto esses críticos não costumam ver televisão.
O sr. acha que algum outro livro do sr. renderia uma adaptação tão boa quanto Ensaio sobre a Cegueira? Memorial do Convento, talvez?
Memorial do Convento certamente, mas há outros como, por exemplo, O Homem Duplicado.
O sr. acha que o mundo — ou o governo de Portugal, pelo menos — estaria mais preparado hoje para O Evangelho Segundo Jesus Cristo?
Com o atual governo seria impossível que o fato se repetisse. Mas como é perigoso apostar no futuro (imaginemos que a direita volte ao poder) estejamos atentos.
Faz alguns anos, em uma entrevista ao jornal El País, o sr. rompeu com o regime cubano. Mas ainda se definiu como um "comunista libertário". No entender do sr., qual futuro pode haver para o socialismo no mundo?
Em minha opinião, Marx nunca teve tanta razão como hoje. O problema está na desorganização estrutural das esquerdas atuais, na sua incapacidade para criar modelos originais. A social-democracia, que é, como devíamos ter a obrigação de não esquecer, a cara amável do capitalismo mais duro, logrou a proeza de minar, às vezes pela corrupção, as bases sociais dos partidos de esquerda e dos sindicatos. Enquanto não tivermos uma alternativa política capaz de travar batalha em todos os níveis da sociedade, não será possível desalojar o capitalismo do poder.
O que o sr. acha da eventual eleição de Barack Obama nos Estados Unidos?
As expectativas são grandes. Esperemos que a nova realidade (na hipótese previsível do triunfo) se manifeste. Já tivemos muitas decepções.
O sr. sempre fez questão de que as edições de seus livros nos demais países de língua portuguesa conservassem a grafia de Portugal. O que o sr. acha da reforma ortográfica que começará a vigorar no ano que vem, na tentativa de uniformizar as grafias de todos esses países?
Oxalá tenha terminado o que já parecia um interminável folhetim, reforma sim, reforma não, reforma talvez. Por muito que desagrade a um número considerável de pessoas responsáveis, a reforma era necessária. Não escreveremos pior com ela, e isso é o que importa.
A epígrafe de A Viagem do Elefante é: "Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam". Este lugar é o mesmo para todos nós?
Sim e chama-se morte.
O Livro
A Viagem do Elefante, de José Saramago. Companhia das Letras, 258 págs., preço a definir.
A Exposição
A Consistência dos Sonhos. Instituto Tomie Ohtake (av. Faria Lima, 201, Pinheiros, São Paulo, 0++/11/2245-1900). 3ª a dom., das 11h às 20h. De 28/10 a 15/2/2009. Grátis.
O Livro...
Não é todo dia que aparece um elefante em nossa vida, muito menos chamado Salomão. Pois é este formoso e meigo paquiderme o herói da viagem que aqui se conta.
Foi numa conversa de alcova, nos idos de 1551, que dom João III e sua mulher Catarina d?Áustria selaram o destino do elefante Salomão. Ele despertara grande curiosidade ao desembarcar em Lisboa, mas agora vegetava, sujo e malcheiroso, num cercado para os lados de Belém. Suas altezas dão novo alento a Salomão quando resolvem oferecê-lo de presente de casamento ao arquiduque austríaco Maximiliano II, recém-casado com a filha do imperador Carlos V.
E lá se vai a caravana. Meses a fio, um punhado de soldados, cavalos, bois e um elefante de três metros de altura e quatro toneladas de peso, percorre os caminhos de Portugal, Espanha e Itália, enfrentando intempéries, perigos reais e imaginários, vivendo aventuras ao lado de uma profusão de atores que surgem e logo desaparecem do palco do relato. Com sua finíssima ironia e muito humor, sua prosa que destila poesia, José Saramago reconstrói essa epopéia de fundo histórico e dela se vale para fazer considerações sobre a natureza humana e, também, elefantina.
"Por muito incongruente que possa parecer...", assim começa o novo romance - ou conto, como ele prefere chamá-lo - de José Saramago, sobre a insólita viagem de um elefante chamado Salomão, que no século XVI cruzou metade da Europa, de Lisboa a Viena, por extravagâncias de um rei e um arquiduque. O episódio é verdadeiro. Dom João III, rei de Portugal e Algarves, casado com dona Catarina d'Áustria, resolveu numa bela noite de 1551 oferecer ao arquiduque austríaco Maximiliano II, genro do imperador Carlos Quinto, nada menos que um elefante. O animal viera de Goa junto com seu tratador, algum tempo antes. De início, o exotismo de um paquiderme de três metros de altura e pesando quatro toneladas, bebendo diariamente duzentos litros de água e outros tantos quilos de forragem, deslumbrara os portugueses, mas agora Salomão não passava de um elefante fedorento e sujo, mantido num cercado nos arredores de Lisboa. Até que surge a idéia mirabolante de presenteá-lo ao arquiduque, então regente da Espanha e morando no palácio do sogro em Valladolid.
Esse fato histórico é o ponto de partida para José Saramago criar, com sua prodigiosa imaginação, uma ficção em que se encontram pelos caminhos da Europa personagens reais de sangue azul, chefes de exército que quase chegam às vias de fato, padres que querem exorcizar Salomão ou lhe pedir um milagre. Depois de percorrer Portugal, Espanha e Itália, a caravana chega aos estreitos desfiladeiros dos Alpes, que Salomão enfrenta impávido.
A viagem do elefante, primeiro livro de José Saramago depois do relato autobiográfico Pequenas memórias (2006), é uma idéia que ele elaborava há mais de dez anos, desde que, numa viagem a Salzburgo, na Áustria, entrou por acaso num restaurante chamado O Elefante. Com sua finíssima ironia e muito humor, sua prosa que destila poesia, Saramago reconstrói essa epopéia de fundo histórico e dela se vale para fazer considerações sobre a natureza humana e, também, elefantina. Impelido a cruzar meia Europa por conta dos caprichos de um rei e de um arquiduque, Salomão não decepcionou as cabeças coroadas. Prova de que, remata o autor, sempre se chega aonde se tem de chegar.
"Não há vento, porém a névoa parece mover-se em lentos turbilhões como se o próprio bóreas, em pessoa, a estivesse soprando desde o mais recôndito norte e dos gelos eternos. O que não está bem, confessemo-lo, é que, em situação tão delicada como esta, alguém se tenha posto aqui a puxar o lustro à prosa para sacar alguns reflexos poéticos sem pinta de originalidade. A esta hora os companheiros da caravana já deram com certeza pela falta do ausente, dois deles declararam-se voluntários para voltar atrás e salvar o desditoso náufrago, e isso seria muito de agradecer se não fosse a fama de poltrão que o iria acompanhar para o resto da vida, Imaginem, diria a voz pública, o tipo ali sentado, à espera de que aparecesse alguém a salvá-lo, há gente que não tem vergonha nenhuma. É verdade que tinha estado sentado, mas agora já se levantou e deu corajosamente o primeiro passo, a perna direita adiante, para esconjurar os malefícios do destino e dos seus poderosos aliados, a sorte e o acaso, a perna esquerda de repente duvidosa, e o caso não era para menos, pois o chão deixara de poder ver-se, como se uma nova maré de nevoeiro tivesse começado a subir. Ao terceiro passo já não consegue nem sequer ver as suas próprias mãos estendidas à frente, como para proteger o nariz do choque contra uma porta inesperada. Foi então que uma outra ideia se lhe apresentou, a de que o caminho fizesse curvas para um lado ou para o outro, e que o rumo que tomara, uma linha que não queria apenas ser recta, uma linha que queria também manter-se constante nessa direcção, acabasse por conduzi-lo a páramos onde a perdição do seu ser, tanto da alma como do corpo, estaria assegurada, neste último caso com consequências imediatas. E tudo isto, ó sorte mofina, sem um cão para lhe enxugar as lágrimas quando o grande momento chegasse. Ainda pensou em voltar para trás, pedir abrigo na aldeia até que o banco de nevoeiro se desfizesse por si mesmo, mas, perdido o sentido de orientação, confundidos os pontos cardeais como se estivesse num qualquer espaço exterior de que nada soubesse, não achou melhor resposta que sentar-se outra vez no chão e esperar que o destino, a casualidade, a sorte, qualquer deles ou todos juntos, trouxessem os abnegados voluntários ao minúsculo palmo de terra em que se encontrava, como uma ilha no mar oceano, sem comunicações. Com mais propriedade, uma agulha em palheiro. Ao cabo de três minutos, dormia. Estranho animal é este bicho homem, tão capaz de tremendas insónias por causa de uma insignificância como de dormir à perna solta na véspera da batalha. Assim sucedeu. Ferrou no sono, e é de crer que ainda hoje estaria a dormir se salomão não tivesse soltado, de repente, em qualquer parte do nevoeiro, um barrito atroador cujos ecos deveriam ter chegado às distantes margens do ganges. Aturdido pelo brusco despertar, não conseguiu discernir em que direcção poderia estar o emissor sonoro que decidira salvá-lo de um enregelamento fatal, ou pior ainda, porque isto é terra de lobos, e um homem sozinho e desarmado não tem salvação ante uma alcateia ou um simples exemplar da espécie. A segunda chamada de salomão foi mais potente ainda que a primeira, começou por uma espécie de gorgolejo surdo nos abismos da garganta, como um rufar de tambores, a que imediatamente se sucedeu o clangor sincopado que forma o grito deste animal. O homem já vai atravessando a bruma como um cavaleiro disparado à carga, de lança em riste, enquanto mentalmente implora, Outra vez, salomão, por favor, outra vez. E salomão fez-lhe a vontade, soltou novo barrito, menos forte, como de simples confirmação, porque o náufrago que era já deixara de o ser, já vem chegando, aqui está o carro da intendência da cavalaria, não se lhe podem distinguir os pormenores porque as coisas e as pessoas são como borrões indistintos, outra ideia nos ocorreu agora, bastante mais incómoda, suponhamos que este nevoeiro é dos que corroem as peles, a da gente, a dos cavalos, a do próprio elefante, apesar de grossa, que não há tigre que lhe meta o dente, os nevoeiros não são todos iguais, um dia se gritará gás, e ai de quem não levar na cabeça uma celada bem ajustada. A um soldado que passa, levando o cavalo pela reata, o náufrago pergunta-lhe se os voluntários já regressaram da missão de salvamento e resgate, e ele respondeu à interpelação com um olhar desconfiado, como se estivesse diante de um provocador, que havê-los já os havia em abundância no século dezasseis, basta consultar os arquivos da inquisição, e diz, secamente, Onde é que você foi buscar essas fantasias, aqui não houve nenhum pedido de voluntários, com um nevoeiro destes a única atitude sensata foi a que tomámos, manter-nos juntos até que ele decidisse por si mesmo levantar-se, aliás, pedir voluntários não é muito do estilo do comandante, em geral limita-se a apontar tu, tu e tu, vocês, em frente, marche, o comandante diz que, heróis, heróis, ou vamos sê-lo todos, ou ninguém. Para tornar mais clara a vontade de acabar a conversa, o soldado içou-se rapidamente para cima do cavalo, disse até logo e desapareceu no nevoeiro. Não ia satisfeito consigo mesmo. Tinha dado explicações que ninguém lhe havia pedido, feito comentários para que não estava autorizado. No entanto, tranquilizava-o o facto de que o homem, embora não parecesse ter o físico adequado, deveria pertencer, outra possibilidade não cabia, pelo menos, ao grupo daqueles que haviam sido contratados para ajudar a empurrar e puxar os carros de bois nos passos difíceis, gente de poucos falares e, em princípio, escassíssima imaginação. Em princípio, diga-se, porque ao homem perdido no nevoeiro imaginação foi o que pareceu não lhe ter faltado, haja vista a ligeireza com que tirou do nada, do não acontecido, os voluntários que deveriam ter ido salvá-lo. Felizmente para a sua credibilidade pública, o elefante é outra coisa. Grande, enorme, barrigudo, com uma voz de estarrecer aos menos timoratos e uma tromba como não a tem nenhum outro animal da criação, o elefante nunca poderia ser produto de uma imaginação, por muito fértil e dada ao risco que fosse. O elefante, simplesmente, ou existiria, ou não existiria. É portanto hora de ir visitá-lo, hora de lhe agradecer a energia com que usou a salvadora trombeta que deus lhe deu, se este sítio fosse o vale de josafá teriam ressuscitado os mortos, mas sendo apenas o que é, um pedaço bruto de terra portuguesa afogado pela névoa onde alguém, quem, esteve a ponto de morrer de frio e abandono, diremos, para não perder de todo a trabalhosa comparação em que nos metemos, que há ressurreições tão bem administradas que chega a ser possível executá-las antes do passamento do próprio sujeito. Foi como se o elefante tivesse pensado, Aquele pobre diabo vai morrer, vou ressuscitá-lo.
E aqui temos o pobre diabo desfazendo-se em agradecimentos, em juras de gratidão para toda a vida, até que o cornaca se decidiu a perguntar, Que foi que o elefante lhe fez para que você lhe esteja tão agradecido, Se não fosse ele, eu teria morrido de frio ou teria sido comido pelos lobos, E como conseguiu ele isso, se não saiu daqui desde que acordou, Não precisou de sair daqui, bastou-lhe soprar na sua trombeta, eu estava perdido no nevoeiro e foi a sua voz que me salvou, Se alguém pode falar das obras e feitos de salomão, sou eu, que para isso sou o seu cornaca, portanto não venha para cá com essa treta de ter ouvido um barrito, Um barrito, não, os barritos que estas orelhas que a terra há-de comer ouviram foram três. O cornaca pensou, Este fulano está doido varrido, variou-se-lhe a cabeça com a febre do nevoeiro, foi o mais certo, tem-se ouvido falar de casos assim. Depois, em voz alta, Para não estarmos aqui a discutir, barrito sim, barrito não, barrito talvez, pergunte você a esses homens que aí vêm se ouviram alguma coisa. Os homens, três vultos cujos difusos contornos pareciam oscilar e tremer a cada passo, davam imediata vontade de perguntar, Onde é que vocês querem ir com semelhante tempo. Sabemos que não era esta a pergunta que o maníaco dos barritos lhes fazia neste momento e sabemos a resposta que lhe estavam a dar. O que não sabemos é se algumas destas coisas estão relacionadas umas com as outras, e quais, e como. O certo é que o sol, como uma imensa vassoura luminosa, rompeu de repente o nevoeiro e empurrou-o para longe. A paisagem fez-se visível no que sempre havia sido, pedras, árvores, barrancos, montanhas. Os três homens já não estão aqui. O cornaca abre a boca para falar, mas torna a fechá-la. O maníaco dos barritos começou a perder consistência e volume, a encolher-se, tornou-se meio redondo, transparente como uma bola de sabão, se é que os péssimos sabões que se fabricam neste tempo são capazes de formar aquelas maravilhas cristalinas que alguém teve o génio de inventar, e de repente desapareceu da vista. Fez plof e sumiu-se. Há onomatopeias providenciais. Imagine-se que tínhamos de descrever o processo de sumição do sujeito com todos os pormenores. Seriam precisas, pelo menos, dez páginas. Plof."
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